A Primavera do Jerónimo

Está definido o cenário, que pouco deve ter mudado desde a fundação, em 1915. Rafael Fonseca lidera a sala. Sem pressas, com um sorriso permanente, sossega os comensais: a casa é pequena mas foca-se no bem servir, no desfrute. Isto não é fast-food. Peço deliberadamente comida demais. Quero provar muitas coisas. Fonseca convida-me a reflectir, mas torneio a situação, tenho muita fome. Começa assim o desfilar. Dispensei o couvert, sedutor à fome mas um pouco banal. Prefiro ir sonhando com o bacalhau à Brás, cujos ovos oiço bater na cozinha logo ao lado. Espreito, e vejo a confecção a decorrer no momento, penso que não falta muito. Na verdade ainda demora um bocado, mas vale bem a pena. Não há aqui modernices, a receita é a tradicional, talvez apenas com as batatas um pouco mais fritas do que pertence, mas eu até prefiro assim. Prefiro também certamente o ponto magnífico de cozedura, a deixar o prato sumarento, apesar de os ovos estarem cozinhados, não apenas coagulados. Mistérios de uma mão experiente, segredos de uma cozinha? Não perguntei. Decepção logo a seguir, com a alheira, de caça (?), que pedi sem acompanhamentos, só para picar. Muito avinagrada e de qualidade fracota, ficou lá toda. Próxima paragem: filetes de peixe galo. Muito saborosos, polme e fritura irrepreensíveis, a manter a humidade firme por dentro, sequinhos e estaladiços por fora. Acompanham com arroz de açafrão, saboroso e bem feito, mas que cede a vez a uma açorda de ovas (de sável?) que circula por ali. Apaladada e leve, que prazer. Já quase como sobremesa, uma perdiz à Serra Morena. Bicho de caça, compensa a secura com um molho rico, cremoso e muito suave por onde espreitam doçuras (ervas do monte?). Grelos salteados impecáveis, batatas fritas caseiras clássicas no seu corte desigual e fritura pouco exigente. Termino com um bolo de chocolate como uma mousse densa numa cama de massa, não percebi, mas fui compensado por um bom leite-creme, simples e delicado. Muita simpatia, ambiente de pré-boémia calma e contida, que quando saímos já o bairro acelera. Copos de vinho no mínimo absoluto, mas a carta tem algumas surpresas, e o serviço é correcto. Um restaurante carinhoso e a acarinhar.